O mercado tem uma verdadeira paixão pelas chamadas buzzwords, aquelas palavrinhas da moda, aparentemente revolucionárias, que todo mundo repete e ajudam a demarcar se você está “por dentro, atualizado” ou “por fora, ultrapassado”. Transformação Digital parece ser uma delas, mas nesse caso o buraco é um pouco mais embaixo.
Primeiramente porque, nesse caso, de fato é algo revolucionário, inescapável e inegável - e não apenas a última tendência do momento. Mas para além disso, existe uma verdadeira guerra de caça-cliques, onde cada um tenta fazer uma afirmação mais alarmista do que o outro, com o objetivo de se posicionar como referência no assunto. E no meio desse tiroteio, ficamos nós, tentando entender o que é fato e o que é apenas hype.
Obviamente a Transformação Digital é um fenômeno de altíssimo impacto. Vamos observar algumas estatísticas recentes:
- Quase 90% dos executivos seniores entrevistados pelo Gartner acreditam que a transformação digital deve ser uma prioridade fundamental para as empresas.¹
- De acordo com uma análise da Forbes em 2016, 84% dos projetos de transformação digital falhariam. Em 2022 repetiram a análise e ainda não veem melhora significativa. ²
- As empresas estão alocando recursos substanciais para projetos de transformação digital, com gastos médios de US$ 15,7 milhões em 2023.³
- 89% das grandes empresas em todo o mundo embarcaram em sua jornada de transformação digital e IA. No entanto, obtiveram apenas 31% do aumento de receita previsto e 25% de economia de custos. 4
Por um lado, sim, as empresas precisam iniciar suas jornadas de Transformação Digital urgentemente, como um elemento de alta prioridade, ligado diretamente a sobrevivência do negócio. Mas ao mesmo tempo elas precisam ser extremamente cuidadosas ao navegar nessa enxurrada de informações, falsas promessas e muita, muita hype.
É importante lembrarmos que muitas previsões dadas como certas, na verdade se mostraram grandes furadas. Você se lembra do quanto se falava dos impactos de Google Glass, Realidade Aumentada e Second Life? Mesmo o Metaverso (um Second Life repaginado), cuja hype foi incrivelmente acelerada, hoje já dá indícios de que não é tudo isso.
Mas então, o que podemos fazer?
Uma das principais técnicas de sobrevivência que militares mundo afora aprendem, para casos em que você está perdido em uma mata, por exemplo, se baseia em um acrônimo: ESAON – Estacionar, Sentar, Alimentar, Orientar e Navegar. Essa técnica se aplica perfeitamente ao cenário da Transformação Digital. Os primeiros passos, Estacionar e Sentar, são talvez um pouco contraintuitivos. Mas na verdade, estacionar e sentar são as primeiras coisas que você deve fazer, porque, como dizia o Gato de Cheshire no clássico livro Alice no País das Maravilhas, “se você não sabe para onde está indo, qualquer caminho serve”. E se você apenas anda, pela mera sensação de que ao andar está evoluindo, na verdade você pode estar simplesmente gastando energia para nada.
O próximo passo é Alimentar. No caso da Transformação Digital, é se alimentar de dados, informações, reflexões e insights. Não acredite em uma única fonte e, sinceramente, desconfie de qualquer um que venha muito cheio de certezas. O cenário é muito incerto e nesse sentido, a principal característica de uma fonte confiável é a parcimônia. Se informe, troque ideia com diferentes fontes, mas ao primeiro sinal de alarmismo e certezas absolutas, ligue seu alerta: Você pode estar diante de mais um caça-cliques alarmista.
O próximo passo é Orientar-se. Ler o ambiente no qual você está inserido, entender o cenário e buscar fatos e evidências concretas que você pode usar para se situar.
Por fim, a última etapa é Navegar. Estando devidamente alimentado e orientado, é possível traçar uma estratégia de qual caminho percorrer e como fazer isso. E esse processo todo passa definitivamente pelas pessoas. Preparar seu time, em todos os níveis, do operacional ao estratégico, é talvez a única característica da Transformação Digital que se aplique a toda e qualquer empresa.
Um dos meus autores preferidos nessa área (e definitivamente uma fonte confiável), Cezar Taurion, afirmava já em 2016 que não se faz uma cultura digital com um slogan. Segundo o autor, as empresas precisam sair desse modelo antiquado de implementações de mudanças burocráticas e lentas (como os antigos ERPs) e adotar um modelo mais flexível e ágil. Baseado em um estudo do MIT Sloan Management School, ele sugere strês áreas de foco para criar uma cultura digital:
1. Criar uma cultura digital é um esforço intencional e não obra do acaso - não se cria apenas com slogans de “somos digitais”, e ao mesmo tempo continuar a manter os processos e as estruturas organizacionais da sociedade analógica. É um esforço de mudança de conceitos que precisa do comprometimento do CEO e dos demais executivos.
2. Todos os executivos precisam navegar bem no mundo digital. Os executivos e as lideranças no mundo digital devem ter skills de tecnologia, fundamentalmente ter visão transformadora, ser visionário (forward thinker) e espírito de colaboração e liderança. Ter excedido suas metas de vendas nos últimos quartis não é qualificação prioritária para assumir uma liderança no mundo digital.
3. É absolutamente essencial investir em talentos digitais. O ambiente de trabalho hoje é totalmente diferente daquele do século 20. Os custos de experimentação e eventuais fracassos são bem mais baixos do que antigamente. Como exemplo, uma mudança fundamental no algoritmo do AdWords do Google foi feita por cinco engenheiros de software em um fim de semana.
Perceba que desde 2016 a necessidade de desenvolver os talentos digitais já estava sendo discutida e hoje se mostra um dos aspectos centrais em qualquer processo de Transformação Digital. No final do dia, quem vai tornar sua empresa mais ou menos adaptada ao cenário não é nenhum software, IA ou sistema – são as pessoas e o uso que elas vão fazer dessas tecnologias.
Em resumo, precisamos analisar friamente o quanto nosso negócio e nosso mercado são efetivamente impactados pela transformação digital, agindo de forma estratégica para determinar de que forma vamos nos situar e nos adaptar a esse cenário. Sem cair em hype, sem achar que o mundo está acabando e sem alarmismo. Apenas para citar uma última estatística, um estudo de pesquisadores do MIT indicou que somente 23% dos trabalhadores, medidos em termos de salários em dólares, poderiam ser efetivamente substituídos pela IA. Nos outros casos, os humanos fizeram o trabalho de forma mais econômica, pois a IA ainda tem altos custos tanto de instalação quanto de operação.
Por essas e outras que o apoio de especialistas é fundamental nesse processo. Aqui na Clave Consultoria, estamos investigando esse tema desde 2018 e temos ajudado diversas empresas a navegar nesse cenário e tomar decisões de forma embasada e robusta. Para citar um dos projetos em que estamos trabalhando atualmente, em uma multinacional do setor de telecom, já avaliamos as competências digitais e o nível de maturidade digital de mais de 6 mil funcionários e devemos chegar a 12 mil ainda esse ano. E adivinhe só? O tempo todo estamos monitorando o cenário e fazendo adaptações no processo porque a Transformação Digital é assim: dinâmica, acelerada, mas muito instigante.
Para finalizar, gostaria de deixar duas sugestões de livros: Tecnologia e Humanidade6 do futurista Gerd Leonhard e I, Human7, do Dr Tomas Chamorro Premuzic, especialista em potencial humano e tecnologia. Ambos vão direto ao ponto do título desse artigo, separando de forma muito inteligente o que é fato e o que hype na Transformação Digital.
1. https://www.gartner.com/en/information-technology/topics/digital-transformation
3. https://www.statista.com/topics/6778/digital-transformation/
4. https://hbr.org/2023/07/the-value-of-digital-transformation
6. Livro Tecnologia e Humanidade, de Gerd Leonhard -
https://futuristgerd.com/expertise/author/
7. Livro I, Human, de Tomas Chamorro-Premuzic -
https://www.drtomas.com/writing/
Luiz Victorino - Head de Pesquisa e Metodologia
Partner & Head de Research and Methodology na Clave. É Ph.D e Consultor de Estratégia na Clave. Atua há mais de 15 anos em projetos nacionais e internacionais em gestão de pessoas e estratégia organizacional, além de pesquisas na área de Psicologia do Trabalho e das Organizações.